Menos de 24 horas depois de mandar soltar o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o desembargador Rogério Favreto do Tribunal Regional Federal da 4ª Região já era alvo de seis pedidos de abertura de procedimentos no Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
Em entrevista à BBC News Brasil, a ex-corregedora nacional de Justiça e ex-ministra do Superior Tribunal de Justiça Eliana Calmon disse que o desembargador “enxovalhou o Judiciário” e defendeu que ele seja investigado por possível falta disciplinar. Reconhecida por chefiar com rigor o CNJ quando foi corregedora, defendendo punição a juízes suspeitos de irregularidades – a quem chamava de “bandidos de toga” – Eliana Calmon não poupou críticas ao desembargador que mandou soltar Lula.
“Ele (Rogério Favreto) quis criar um fato político e usou a magistratura para criar esse fato político. Usou a magistratura e infringiu o princípio de que você deve ser imparcial. Isso é grave, principalmente quando essa imparcialidade tende a atender a um interesse politico-eleitoral”, disse Calmon, que por dois anos – entre 2010 e 2012 – chefiou no CNJ, instituição que controla o Judiciário e fiscaliza magistrados, o setor responsável por investigar denúncias contra juízes.
No plantão do último fim de semana, Favreto acolheu um pedido de habeas corpus feito na sexta (7) por três deputados petistas – Paulo Teixeira (SP), Wadih Damous (RJ) e Paulo Pimenta (PT-RS). O que se seguiu à decisão foi uma “guerra de decisões” que envolveu Favreto, o relator da Operação Lava Jato no TRF-4, João Pedro Gebran Neto, e o juiz Sérgio Moro, responsável pelos processos da Lava Jato na primeira instância.
Para ela, o pedido de habeas corpus não deveria ter sido apresentado ao TRF-4, mas sim ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), já que o tribunal de segunda instância já havia rejeitado os últimos recursos do ex-presidente contra a decisão de 12 anos e um mês de prisão no caso do Tríplex do Guarujá.
“Essa decisão inusitada do desembargador fica até difícil de explicar juridicamente porque é um simulacro de decisão”, afirmou.
“Se você for analisar na essência, não era caso de habeas corpus. Não havia fato novo. Ele não tinha competência e a competência do tribunal estava esgotada, porque já tinha votado embargos (recursos ao próprio tribunal após decisão do colegiado).” Na visão da ex-corregedora do CNJ, a decisão Favreto violaria a resolução do CNJ que proíbe o juiz de plantão de decidir habeas corpus em caso que já tenha sido julgado pelo próprio tribunal em decisão colegiada.
Embate judiciário
O presidente do tribunal, Thompson Flores, precisou intervir e determinou que Lula continue preso. O episódio gerou polêmica e acusações – tanto a Moro quanto a Favreto – de uso político do Judiciário.
“A quebra da unidade do direito, sem a adequada fundamentação, redunda em ativismo judicial pernicioso e arbitrário”, afirmam os membros do MP no requerimento ao CNJ.
Um grupo de 100 promotores e procuradores da República apresentou ao CNJ uma representação contra o desembargador, alegando que a decisão dele de soltar Lula “viola flagrantemente o princípio da colegialidade, e, por conseguinte a ordem jurídica e o Estado Democrático de Direito”.
Outros cinco pedidos de investigação foram apresentados por partidos políticos, deputados e advogados. A assessoria do TRF-4 disse que Favreto não responderia às declarações da ex-corregedora nacional de Justiça e informou que, nesta terça (10), a equipe divulgará uma nota a respeito dos pedidos de investigação no CNJ.
No domingo (8), o desembargador negou à BBC News Brasil que tenha agido por motivação política e defendeu sua decisão de mandar soltar Lula, afirmando que a pré-candidatura de Lula à Presidência da República seria um “fato novo” que justificaria libertá-lo agora.
Parlamentares do PT, por outro lado, acusam Moro de quebra de hierarquia e perseguição ao ex-presidente, porque o juiz assinou um despacho no domingo recomendando que a Polícia Federal não cumprisse a decisão de prender Lula até que o relator da Lava Jato no TRF-4 e o presidente da Corte se manifestassem sobre o caso.
No caso de Lula, Favreto argumentou que o petista estava tendo os direitos políticos tolhidos como pré-candidato à Presidência, porque, da cadeia, não poderia participar dos atos preparatórios para a campanha, como sabatinas e reuniões partidárias.
Eliana Calmon rebate dizendo que a pré-candidatura não é um “fato novo” e que, portanto, o desembargador não poderia ter concedido o habeas corpus.
“Existe visivelmente um erro de comportamento do magistrado. Ele contrariou regras do regimento do tribunal e contrariou a resolução 71 do CNJ, que diz que, no caso de HC (habeas corpus), o juiz plantonista não poderia intervir quando a questão já tivesse sido decidida pelo colegiado. Em tese, isso significa que ele cometeu uma infração disciplinar.”
E Moro?
Sobre a intenção do PT de denunciar Sérgio Moro ao CNJ, Eliana Calmon defende que o juiz não cometeu irregularidade, pois, na visão dela, ele se limitou a perguntar ao presidente do TRF-4 e a Gebran Neto como proceder diante da decisão de soltar Lula.
Perguntada se não seria uma violação de hierarquia o fato de Moro ter recomendado que a PF não soltasse Lula até a manifestação dos dois desembargadores, Eliana Calmon disse que não.
“Ele consultou o presidente e o relator. A única coisa que ele fez foi isso, dizer: ‘Eu soube (da decisão de soltar Lula), estou perplexo e vocês agora decidam'”, disse.
Para ela, o objetivo das críticas a Moro é tentar afastá-lo do comando dos processos da Lava Jato.
“O que se quer é atribuir ao juiz uma infração disciplinar de desobediência do superior hierárquico para, dessa forma, criar um óbice a que ele dê continuidade ao processamento da Lava Jato”, avaliou.
As punições possíveis em procedimentos do CNJ vão de advertência à aposentadoria compulsória. Em 11 anos, o CNJ aplicou 87 punições contra magistrados e servidores do Judiciário – 55 delas foram de aposentadoria compulsória.
O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) criticou a posição de Calmon. “Ela deixa de focar na verdadeira ilegalidade, que foi a praticada pelo Sérgio Moro. Ela desfoca da verdadeira gravidade da postura do Sérgio Moro, de descumprimento de ordem judicial”, defendeu, à BBC News Brasil.
Teixeira disse que nesta semana o PT apresentaria uma representação contra Moro ao CNJ por “descumprimento de ordem judicial e obstrução da justiça”.
Outras vozes
O presidente da Associação dos Juízes Federais (Ajufe), Fernando Mendes, disse à BBC News Brasil não ver razões para ação disciplinar contra os magistrados envolvidos na “guerra” de decisões de domingo, porque “todas as manifestações tiveram fundamentos técnicos e divergências como essas fazem parte da rotina do Judiciário”.
“Não há motivo para ação disciplinar da corregedoria. Não há, a princípio, indício de má fé nem de desvio de função”, avaliou.
Mas ele agregou que decisões “monocráticas”, proferidas por um único magistrado se contrapondo a decisões de colegiados sem uma justificativa muito forte, afetam a credibilidade das cortes. “Decisões monocráticas tomadas em sentido contrário não só no primeiro grau, mas nos tribunais superiores, aumentam a imprevisibilidade e isso não é bom”.
Para o presidente interino da Associação dos Magistrados do Brasil (AMB), Paulo César Neves, os acontecimentos de domingo “causaram perplexidade na comunidade jurídica e na sociedade”. Ainda assim, a AMB não se posiciona a favor ou contra de nenhum dos magistrados, nem diz se é um caso para ser tratado pela corregedoria do CNJ.
“É uma questão (de divergência) técnica relacionada a conflito competência. Caberá ao TRF-4 ou ao CNJ, se houver representação, investigar a conduta dos magistrados “, disse Neves.
Exemplo negativo do Supremo
Eliana Calmon também não poupou críticas ao Supremo Tribunal, que, segundo ela, dá um exemplo ruim quando ministros tomam decisões individuais que contrariam o entendimento da maioria.
Embora o plenário tenha decidido em 2016 que condenados em segunda instância já podem começar a cumprir a pena, alguns ministros contrários a essa tese já concederam habeas corpus em casos que não dependem de decisão do colegiado, contrariando o entendimento firmado pela maioria.
“O maior prejuízo que o Supremo causa é à imagem que fica para a magistratura debaixo (para os juízes de instâncias inferiores). O exemplo vem de cima”, afirma.
Para a ex-ministra do STJ, a decisão de mandar soltar Lula e a guerra de despachos que se viu em seguida prejudicam a imagem do Judiciário tanto para o Brasil quanto no exterior.
“O judiciário foi enxovalhado numa proporção muito grave. O maior defeito que se pode atribuir a um juiz é a usurpação de competência e por razões eminentemente políticas. Ele (Rogério Favreto) quis criar um fato político e usou a magistratura para criar esse fato político”, disse.